PEDRO SANTOS GUERREIRO
Comércio sem paralelo
O Estado detesta o comércio. Não é preconceito moral, é preceito legal. A
carga fiscal, burocrática e inspectiva, os custos, as obrigações e os
reportes demonstram-no. Para o Estado, o comércio não é bem economia,
é mercado negro; um comerciante é um evasor; uma transacção é uma
possibilidade de tráfico.
Talvez os consumidores não tenham a noção do que se passa neste momento
no comércio. Não é só a factura obrigatória. É o IVA a 23%, que ou aumentou
os preços (afastando a procura) ou reduziu a margem (diminuindo a
rendibilidade). São os sistemas de facturação novos, que implicam aquisições
de equipamento. É a ligação obrigatória à Internet. É a nova lei do
arrendamento comercial. É o novo regime de bens em circulação, que exige
uma papelada infernal. Os tempos do comerciante de lápis na orelha nem para
nostalgia dão: o Estado passou a coleccionar-lhes as orelhas.
Há razões para isso. Portugal é dos países como mais economia paralela da
Europa (estimando-se em 20% do PIB). Segundo um estudo da F. Schneider,
de 2011, o sector da construção lidera a lista negra da evasão, com 29%,
seguindo-se a hotelaria e a restauração, com 19%. É por isso que, quando
saem dados comparativos do Eurostat, os portugueses desconfiam ao verem
que a nossa carga fiscal nem está acima da média europeia. Os dados estão
certos: o problema é que a carga fiscal é distribuída por uma percentagem
menor de contribuintes. Mais: há todos os dias milhares de viagens-fantasma
em Portugal, na logística, de mercadorias não declaradas. A tudo isso
responde agora o Governo. Mas não só com acção. Com acção, estratégia,
táctica, técnica, pressa, pressão, repressão, contradição e tudo o que tem à
mão.
Um Estado justo valoriza os cumpridores e pune os incumpridores. Um Estado
moderno confia nos seus cidadãos e denuncia os faltores. O Estado Português
não é uma coisa nem outra, é um caçador desesperado de impostos. Caça
passarinhos com metralhadoras e, enquanto olha para o ar, deixa a caça
grossa passar-lhe pelo meio das pernas. Para dinheiro ilegal fora de Portugal,
"swaps" especulativos e planeamento fiscal agressivo há advogados
suficientemente palavrosos. Restauração? É carregar no gatilho.
O Estado não é grande fulano. Não paga as suas dívidas às empresas, mas
cobra-lhes multas pelos seus atrasos. Multiplica taxas camarárias. Sobe o IVA
para 23%. Mas é incapaz de ter tribunais que resolvam as questões de
cobrança de IVA, em que sobretudo os comerciantes mais pequenos não têm
fundo de maneio para resistir. As PME que fornecem grandes empresas
confrontam-se demasiadas vezes com prazos de pagamento impostos pelos
clientes de que dependem, pagando o IVA a 60 dias, mas recebendo apenas a
120 dias (o que, para mais, permite que quem paga tarde seja "financiado" pelo
reembolso do IVA mesmo antes de pagar a factura). Os tribunais são caros e
não funcionam, as empresas facturam mas não recebem. Como se costuma
dizer, têm "o dinheiro na rua".
Falar de crescimento económico é um mito quando o Estado não percebe que,
na voragem fiscal com que está obcecado, faz da vigilância uma caça
predatória que mata empresas à velocidade da sua própria tenaz. Tem de ser
possível combater o comércio paralelo sem atolar o comércio cumpridor em
armas de tortura fiscais, legais e burocráticas – e logo quando mais
comerciantes estão a fechar portas. Tem de ser possível diferenciar grandes e
pequenos. Tem de ser possível que Estado e cidadãos possam confiar
reciprocamente. Tem de ser possível que uma cadeia de valor não seja um
valor preso numa cadeia. Tem de ser possível haver essa coisa tão falada e
desejada a que se chama… economia.
in Editorial Jornal de Negócios